fbpx

A Magistratura Digital, por Jayme Weingartner Neto

A Magistratura Digital, por Jayme Weingartner Neto

Artigo publicado no Caderno Doc do jornal Zero Hora na edição de final de semana, dias 3 e 4 de agosto de 2019. 

Em breve, os magistrados gaúchos vão se reunir no seu XIII Congresso Estadual. De 14 a 16 deste mês, estaremos debatendo as oportunidades (imensas) e os desafios (abissais) de jurisdicionar (dizer o direito, resolvendo conflitos) para uma sociedade imersa nas novas tecnologias, em especial de informação e de comunicação.

Agrupamos as inquietações em três eixos, temas que batem à porta dos tribunais, pessoas que desejam e sofrem em audiências, o que, num jogo de espelhos instigante, também atinge as mulheres e homens (e suas famílias) que compõem o Poder Judiciário. Nada mais natural, pois há muito superado o mito do julgador que se insulava na torre de marfim.

O segundo, a proteção de dados.

O terceiro, a tecnologia e a inovação na prática judicial.

Antes, porém, qual o contexto? Uma sociedade da transparência, também acelerada, cujos “movimentos dos corpos são obscenos quando se fazem excessivos e supérfluos”, pois se despojam “de toda a narratividade, de toda a direção, de todo o sentido”, como apontou Byung-Chul Han em A Sociedade da Transparência.

Há mais a afetar o processo (método para alcançar a pacificação social com justiça) como instância narrativa e indicar o crescente desencontro entre sociedade e Estado. Um marco? As jornadas de 2013. Não é possível detalhar a sequência dos eventos nesse espaço. É inegável, entretanto, que o mundo da vida e a esfera pública foram alterados. Tenha-se em mente, primordialmente, o “descompasso de temporalidades entre a comunicação do mundo da vida (bem como da esfera pública) e a comunicação própria do Estado” notados por Eugenio Bucci (em A Forma Bruta dos Protestos). A máquina estatal, com seus passos de chumbo, torna-se incompatível com as demandas da sociedade civil (o tema é mundial), fazendo os governantes sentirem a terra a tremer sob os seus pés.

E espreitam armadilhas, como o dataísmo, seja pelo risco de soterramento por dados (que antes escondem que revelam), seja pela promessa do Big Data, um novo credo segundo o qual, pressuposto que tudo é mensurável e deve ser medido e diante da assombrosa capacidade de processamento, a transparência da informação vai filtrar a emoção e a ideologia e permitirá compreender o passado e o presente e até prever o futuro. Contudo, como escreve Han em Psicopolítica: “Os dados e os números não são narrativos, mas aditivos. O sentido, pelo contrário, radica numa narrativa. Os dados colmatam o vazio de sentido”.

Por fim, o mundo testemunha uma crise geral de regulação.

Parte objetiva dessa crise decorre da vertigem da tecnociência, o que acresce complexidade ao fenômeno. Compare-se a própria capacidade humana de adaptabilidade social com a aceleração no ritmo da mudança e da inovação, a trazer especiais desafios ao Estado regulador. Em nossa época, conforme estimativa de Thomas Friedman (em Thank You For Being Late), o mundo se torna desconfortavelmente novo a cada sete anos, enquanto, como indivíduos e sociedades, levamos cerca de 15 anos para nos adaptarmos às mudanças. Os reflexos na atividade reguladora do Estado são profundos: neste interregno necessário para entender uma nova tecnologia e seus impactos, premissa para desenvolver normas adequadas ao novo, inexorável ao poder público encontrar-se mais de uma década defasado frente à realidade que o atropela.

Basta lembrar o Uber: antes de os Estados conseguirem uma resposta satisfatória, em seus reflexos econômicos e de mobilidade urbana, os carros talvez nem tenham mais motoristas (essa tecnologia já está em teste, com previsão de chegada ao mercado para logo). Outra parcela responde pelo nome de crise de representação: “O sistema econômico-político tornou-se autorreferencial. Já não representa os cidadãos ou o público. Os representantes políticos deixam de aparecer como porta-vozes do ‘povo’ e transformam-se em servidores do sistema, que se tornou autorreferencial. (…) A crise da política só poderia ser superada através do restabelecimento da sua ligação com os seres humanos, seus referentes reais” (Han, em No Enxame: Reflexões sobre o Digital).

Neste mundo nos movemos, não no sétimo céu. Mas tampouco no nono círculo do inferno. Prestar jurisdição, decidir um processo, é encontrar sentido na humanidade, é ter esperanças. O drama é julgar com leis que se defasam num piscar de telas e, mais, num espaço de comportamentos fugidios. Para encontrar alternativas, aos eixos.

Liberdade de expressão implica discernir grosseria de crime. Fake news, de opiniões, por mais tolas que sejam. Interditar o discurso de ódio sem esvaziar o livre mercado de ideias. Decidir se é possível uma persona pública, em evidência por sua função, bloquear alguém que a critica em redes privadas. É saber como usar o e-mail institucional e manifestar-se nas redes sociais (o Conselho Nacional de Justiça rediscute, agora, o Provimento nº 71/2018, que trata do uso das redes sociais pelos magistrados).

A proteção de dados é dever imposto pela Lei Geral de Proteção de Dados, nº 13.709/2018, que entrará em vigor em agosto de 2020 e para a qual as empresas se preparam com afinco e preocupação. Em tempos de likes e hackers, a privacidade convulsiona, amiúde sacrificada sem pudor pelos próprios sujeitos do direito fundamental. E o Poder Judiciário, por si, também detém precioso acervo de dados, muitos sigilosos, a exigir providências.

Inovação, para além do slogan, é resiliência diante da inteligência artificial (IA). Três exemplos: a Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça (CEPEJ) vem de lançar (em dezembro passado) uma Carta Ética sobre o uso de IA em sistemas judiciais e seu ambiente; as LawTechs, empresas de tecnologia do setor legal, prometem uma revolução, com redução do número de litígios, promoção de acordos, gestão documental e apoio (parâmetros objetivos) ao trabalho de juízes, promotores e advogados (no Brasil, cresceram 240% em 2018); e uma lei francesa de março de 2019, nada obstante, proibiu a “jurimetria”.

Por que é preciso navegar no oceano digital – será mesmo preciso, e quanto? Talvez, no fundo, seja uma questão de escolha: o que queremos conservar, no fim das contas? Uma competência coletiva a aprender e construir.

XIII Congresso Estadual dos Magistrados

De 14 a 16 de agosto, no Sheraton Hotel Porto Alegre, com as presenças, entre outros, do psicanalista Contardo Calligaris. Para conferir a programação e se inscrever clique link.

 

* Jayme Weingartner Neto é desembargador do Tribunal de Justiça, diretor da Escola da Magistratura e professor do PPGDIR Unilasalle (Canoas).