31 ago Regime jurídico dos direitos fundamentais sociais na Constituição (parte 2), por Ingo Wolfgang Sarlet
Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Wolfgang Sarlet, publicado no dia 19 de agosto
na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur.
Mesmo considerando as relevantes diferenças não apenas entre os níveis de positivação dos direitos sociais entre os Estados que integram a comunidade internacional, mas também atentando para as diferenças existentes quanto ao respectivo regime jurídico, o conjunto das objeções que costumam ser referidas quando se trata de definir se e em que medida os direitos sociais podem ser considerados direitos exigíveis, pode, em maior ou menor medida, ser considerado como comum.
Mas antes de seguirmos nessa senda, há que problematizar algo que de certo modo opera como pressuposto e inclusive condicionante do ponto de vista jurídico-normativo, no caso, o significado do disposto no artigo 5º, parágrafo 1º da CF, de acordo com o qual as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
Seguimos aqui convictos de que se está diante de questão preliminar ao da efetiva proteção dos direitos fundamentais, e, portanto, da respectiva eficácia social. Com efeito, a depender do sentido atribuído à norma, a recusa da aplicabilidade imediata na esfera dos direitos sociais pode ensejar, como já ocorreu e ainda ocorre em outros países, sua redução a meras normas do tipo programático, ou então – o que já representou um expressivo avanço – à condição de normas definidoras de fins e tarefas estatais, em qualquer caso impedindo que os Juízes delas extraiam posições subjetivas vinculativas em favor dos cidadãos.
No Brasil, contudo, embora siga existindo resistência, o caminho acabou sedo distinto, poder-se-ia dizer até mesmo relativamente isolado no cenário mundial, o que foi, em primeira linha, obra da doutrina e da jurisprudência, ao definirem, a partir do texto constitucional, o regime jurídico dos direitos sociais inclusive quanto ao problema de sua eficácia e efetividade.
Nesse contexto, o enunciado do artigo 5º, parágrafo 1º, da CF, no sentido da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, evidentemente dirigido, em primeira linha, aos órgãos judiciais, teve uma significativa repercussão e serve mesmo de critério para uma compreensão constitucionalmente adequada da matéria.
Se por um lado é verdade que os juízes e tribunais brasileiros – com destaque aqui para o STJ e STF – poderiam ter sido mais contidos nessa seara, também é certo que ao levarem a sério o citado preceito não poderiam mais seguir tratando os direitos sociais como meras normas programáticas, pois tal exegese, ao menos no nosso sentir, conflitaria frontalmente com o texto da Constituição Federal, que justamente diz o contrário.
Em que pese a circunstância de que situação topográfica do dispositivo poderia de fato sugerir uma aplicação da norma contida no art. 5º, parágrafo 1º, da CF apenas aos direitos individuais e coletivos, o fato é que este argumento não corresponde à expressão literal do dispositivo, que, consoante frisado, utiliza a formulação genérica “direitos e garantias fundamentais”, revelando que, mesmo em se procedendo a uma interpretação meramente literal, não há como sustentar uma redução do âmbito de aplicação da norma a qualquer das categorias específicas de direitos, nem mesmo aos – como já visto, equivocadamente designados – direitos individuais e coletivos do art. 5º.
Em sentido contrário, todavia, houve inclusive quem propusesse uma “nova exegese” da norma contida no art. 5º, parágrafo 1º, CF, sustentando a sua necessária interpretação restritiva quanto ao alcance (embora extensiva quanto à eficácia) já que, segundo tal orientação, o Constituinte “disse mais do que o pretendido”,[1] o que, contudo, sugere a adoção de uma interpretação baseada não apenas na questionada e questionável “vontade do Constituinte”, mas de um “originalismo” ancorado numa vontade presumidamente contrária ao próprio teor literal do dispositivo, o que, à evidência, não nos parece seja sustentável.
De qualquer sorte, o problema maior, ainda mais para os efeitos limitados da presente contribuição ao debate, não é o de justificar a aplicação, aos direitos fundamentais em geral, do disposto no artigo 5º, parágrafo 1º, da CF[2], o que, de resto, corresponde, em regra, à interpretação ainda hegemônica no Brasil, mas sim, o de verificar como tal comando normativo deve ser manejado, especialmente na esfera de sua aplicação pelos órgãos jurisdicionais, dada a diversidade e complexidade do subsistema constitucional dos direitos e garantias fundamentais, inclusive para evitar alguns flagrantes abusos.
Nessa perspectiva, segue controverso até que ponto a afirmação textual da aplicabilidade imediata realmente torna diretamente aplicáveis todas as normas de direitos fundamentais, em especial, até que ponto é possível, a partir tão-somente de tal dicção constitucional, extrair posições subjetivas, ainda mais quando se trata de impor ao poder público, notadamente ao legislador e administrador, obrigações positivas, de natureza jurídica ou fática.
Isso, por sua vez, guarda conexão com a noção de democracia substancial e o papel do Poder Judiciário nessa seara e também com o problema das razões invocadas para justificar e legitimar tal atuação. No caso da definição do regime jurídico e da interpretação por ora dominante, há que prevalecer, até mesmo para evitar uma contradição, que a aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais implica, também no domínio dos direitos sociais, que se cuida de “trunfos contra a maioria” (Jorge Novais), ainda que tal noção careça de maior explicitação, mormente no concernente à sua aplicação nos casos concretos.
Sem que aqui se possa aprofundar o tema, apresentando e avaliando as diversas posições esgrimidas na literatura e jurisprudência, o que se busca é apresentar, ainda que de modo sumário, os principais argumentos e diretrizes a informar a exegese do disposto no artigo 5º, parágrafo 1º, da CF, especialmente para o efeito de demonstrar que a aplicabilidade imediata de todas as normas de direitos fundamentais, não se faz necessariamente em detrimento da coerência jurídico-constitucional, além de guardar sintonia com a heterogeneidade do catálogo de direitos fundamentais e – convém acrescer – de não comprometer a força normativa possível de tais normas, inclusive em matéria de direitos sociais.
Nesse contexto, verificar-se-á que até mesmo os defensores mais ardorosos de uma interpretação restritiva do sentido e alcance da norma contida no artigo 5º, parágrafo 1º, da CF, reconhecem que o constituinte pretendeu, com sua expressa previsão no texto, evitar um esvaziamento dos direitos fundamentais, impedindo que “permaneçam letra morta no texto da Constituição”.[3] Ainda nessa perspectiva, resulta evidente que, numa primeira aproximação, a afirmação da aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais se revela como sendo incompatível com a ideia de que direitos fundamentais possam ter sido consagrados em normas de cunho eminentemente (meramente) programático. Com isso, todavia, ainda não se logra responder de forma satisfatória o que significa, afinal, reconhecer às normas de direitos fundamentais a qualidade de serem diretamente aplicáveis.
Por outro lado, não se deve desconsiderar a existência, no próprio catálogo dos direitos fundamentais, de preceitos que assumem a feição de normas que estabelecem fins e tarefas para os órgãos estatais, bem como ordens dirigidas ao legislador, do que dão conta, entre outros, o exemplo da proteção do consumidor, apenas para mencionar um dos casos mais evidentes.
Assim, se para as normas-fim e normas-tarefa é possível reconhecer, em certa medida, uma aplicabilidade direta, no sentido de que são passíveis de aplicação aos casos concretos pelos órgãos judiciais, no mínimo para o efeito de uma interpretação conforme a constituição, ou mesmo de uma declaração de inconstitucionalidade de ato normativo ou do reconhecimento de um efeito “derrogatório” ou “invalidante”[4], com ainda maior razão há de se reconhecer a eficácia direta das normas definidoras de direitos fundamentais, ainda que se cuide de direitos sociais e de normas que, portanto, em certa medida são similares, naquilo em que impõe deveres de cunho positivo ao poder público, às normas impositivas de fins e tarefas.
O problema, mais uma vez se percebe, não é propriamente o de reconhecer uma aplicabilidade imediata das normas de direitos sociais, mas sim o de verificar qual o sentido e alcance de tal enunciado.
Nesse contexto, sustentou-se que a norma contida no art. 5º, parágrafo 1º, da CF impõe aos órgãos estatais a tarefa de maximizar a eficácia dos direitos fundamentais.[5] Parte da doutrina ainda foi bem além, sustentando o ponto de vista segundo o qual a norma contida no art. 5º, parágrafo 1º, da CF, estabelece a vinculação de todos os órgãos públicos e particulares aos direitos fundamentais, no sentido de que os primeiros estão obrigados a aplicá-los, e os particulares a cumpri-los, independentemente de qualquer ato legislativo ou administrativo.
Da mesma forma, em face do dever de respeito e aplicação imediata dos direitos fundamentais em cada caso concreto, o Poder Judiciário encontra-se investido do poder-dever de aplicar imediatamente as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, assegurando-lhes sua plena eficácia.[6]A falta de uma interposição legislativa não poderá, de tal sorte, constituir obstáculo incontornável à aplicação imediata pelos juízes e tribunais, na medida em que o Judiciário – por força do disposto no art. 5º, parágrafo 1º, da CF –, não apenas se encontra na obrigação de assegurar a plena eficácia dos direitos fundamentais, mas também autorizado a remover eventual lacuna oriunda da falta de concretização.[7] Não fosse assim, os direitos sociais se transmutariam praticamente em direitos legais, porquanto não aplicáveis aos casos concretos, rompendo com sua função de “trunfos contra a maioria”, ainda que se deva levar em conta as peculiaridades dos direitos sociais e fundamentais em geral..
Por tais razões e precisamente pelo fato de que o disposto no artigo 5º, parágrafo 1º, da CF, não dispensa um “sentido próprio, que não pode ser esvaziado de seu conteúdo e muito menos ser identificado com os princípios constitucionais antes referidos, é que seguimos convictos de que uma das consequências – se não a principal – do citado preceito é o de gerar em favor das normas de direitos fundamentais uma presunção de que a ausência de interposição legislativa não impede a sua aplicação imediata pelos órgãos judiciais, bem como não constitui obstáculo a que sejam, desde logo, extraídos efeitos da norma de direito fundamental, inclusive posições subjetivas vinculativas.[8]
Com isso, todavia, não se está a afirmar que a norma consagrada pelo artigo 5º, parágrafo 1º, da CF tenha por consequência uma absoluta uniformidade no que diz com a natureza e alcance dos efeitos jurídicos extraídos das normas de direitos fundamentais, pois, embora se possa falar, em certo sentido (de acordo com terminologia amplamente difundida no meio jurídico brasileiro), de uma eficácia plena das normas de direitos fundamentais sociais, também é preciso lembrar que a noção de normas de eficácia plena, caso utilizada, não deve ensejar o equívoco considerar afasta a possibilidade de limitação e restrição dos direitos fundamentais.
Levando em conta, por outro lado, a dupla dimensão subjetiva e objetiva das normas de direitos fundamentais e considerando a posição preferencial (ainda que diferenciada, a depender dos direitos fundamentais em causa) da dimensão subjetiva, ou seja, de que em primeira linha os direitos fundamentais são direitos individuais e dotados de exigibilidade, o que se afirma é que por força do artigo 5º, parágrafo 1º, da CF, no contexto de um regime jurídico reforçado unificado, também as normas de direitos sociais deverão ser imediatamente aplicadas e assegurar ao seu titular posições subjetivas, cuja natureza e alcance – convém frisar – não podem ser antecipadamente estabelecidos.
Ainda nessa senda, calha notar que a aplicabilidade imediata das normas de direitos sociais não implica (e isso nunca foi por nós sugerido) o reconhecimento de um direito subjetivo a qualquer tipo de prestação estatal, apenas e tão-somente por tal prestação integrar, em tese, o âmbito de proteção possível de um direito fundamental.
Especialmente para os direitos sociais na condição de direitos a prestações materiais (fáticas), a aplicabilidade imediata significa, em regra, que por mais que se há de deferir ao legislador a tarefa de, em primeira linha, concretizar o projeto constitucional e definir o quanto em prestações sociais, distribuídas entre os diversos direitos sociais, cada indivíduo poderá receber do Estado,
Posto de outra forma, a consagração constitucional de um direito social como direito fundamental e o dever de aplicação imediata, conjugado com o dever de máxima eficácia e efetividade, se revela incompatível, inclusive na condição de direitos subjetivos, àquilo que o legislador infraconstitucional decidir que deva ser o conteúdo do direito.
Assim, um direito fundamental social será, pelo menos em princípio e em alguma medida, um direito originário a prestações, apto a ser deduzido diretamente da constituição, orientação que, em termos gerais e ressalvadas as peculiariades de determinados direitos fundamentais, especialmente quando se tratar de direitos a prestações normativas (como se deu no caso do direito de greve dos servidores públicos) encontra guarida também na esfera da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Brasileiro, com destaque para o caso do direito à saúde e do direito à educação, o que de tão notório para o presente efeito não precisará ser mais ilustrado.
De todo modo, o reconhecimento da aplicabilidade imediata das normas de direitos sociais e a teoria e prática correlata em termos de atribuição de correspondentes posições subjetivas prestacionais, não tem quedado sem forte crítica na seara acadêmica e no discurso político, o que aqui não será desenvolvido.
O que sim há de ser sublinhado nessas linhas derradeiras, é que os direitos sociais, mesmo dotados de um regime jurídico reforçado, não são direitos “absolutos” e por isso há que levar a sério as objeções até mesmo históricas em relação à sua condição de direitos subjetivos.. Mas isso será examinado nas próximas colunas, juntamente com o problema dos limites e restrições em matéria de direitos sociais, iniciando pela conhecida objeção (e limite) do custo dos direitos e a assim designada “reserva do possível”.
[1] Cf. a posição (e crítica) de João Pedro Gebran Neto, A Aplicação Imediata dos Direitos e Garantias Individuais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 153 e ss.
[2] Para maior desenvolvimento, inclusive para uma apresentação e discussão das principais posições, em especial das razões em prol de uma interpretação extensiva do âmbito de aplicação do artigo 5º, § 1º, CF, tomamos a liberdade de remeter ao nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, II parte, onde abordamos, em sua intergraliade, o problema.
[3] Assim, por exemplo, leciona Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “A Aplicação Imediata das Normas Definidoras de Direitos e Garantias Fundamentais”, Op. Cit., p. 38.
[4] Cf. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Op. Cit., p. 1180.
[5] Cf., por todos, Flávia Piovesan, “Concretização e Transformação Social: A Eficácia das Normas Constitucionais Programáticas e a Concretização dos Direitos e Garantias Fundamentais”, in: RPGESP nº 37 (1992), p. 73, aderindo à posição de J.J. Gomes Canotilho.
[6] Neste sentido, v. por todos, Eros Roberto Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988, Op. Cit., p. 312 e ss.
[7] V. por todos, Eros Roberto Grau, Direito, Conceitos e Normas Jurídicas, São Paulo: RT, 1988, p. 128-9, e Luís Roberto Barroso, O Direito Constitucional, Op. Cit. p. 145-7.
[8] V. também Fábio Konder Comparato, “O Ministério Público na Defesa dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”, in: Eros Roberto Grau; Sérgio Sérvulo da Cunha (Org.), Estudos de Direito Constitucional em Homenagem a José Afonso da Silva, São Paulo: Malheiros, 2003, p. 252.
*Ingo Wolfgang Sarlet é professor titular da Faculdade de Direito e dos programas de mestrado e doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUC-RS. Desembargador no RS e professor da Escola Superior da Magistratura do RS (Ajuris).