25 dez Tivemos avanços jurídicos e legislativos em 2015, mas há pouco o que comemorar, por Ingo Wolfgang Sarlet
Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Wolfgang Sarlet, publicado no dia 25 de dezembro na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur.
Os Direitos Humanos e os Direitos Fundamentais ocuparam lugar de destaque na pauta política, legislativa e judiciária nacional e internacional em 2015, como, aliás, tem sido habitual nas últimas décadas, no caso brasileiro, especialmente ao longo dos últimos anos, considerando a fecunda jurisprudência do STF sobre a temática.
Para efeitos da presente retrospectiva, iremos retomar sumariamente algumas das principais inovações legislativas e judiciárias que marcaram esse ano de 2015, durante o qual, a despeito de aspectos positivos, em geral não temos muito a comemorar, especialmente se olharmos para os crescentes índices de violência, desemprego e exclusão social que se verificam no Brasil e para o cenário internacional, com a escalada do terrorismo, dos conflitos bélicos (com especial atenção para o que se passa na Síria) e o problema agudo das ondas migratórias com os seus efeitos colaterais, que vão desde o destino de muitos dos que buscam melhorar as suas condições de vida (aqui com referência à morte, maus-tratos, humilhação, entre outros),até o aumento da xenofobia e dos radicalismos, ademais da aposta (no caso do terrorismo) em métodos de combate ao terror cada vez menos compatíveis com as exigências do Estado de Direito e dos direitos humanos e fundamentais, típicos de um “Direito Penal do Inimigo” e cada vez mais próximos mesmo de um Estado de Exceção, que tende a resultar numa suspensão de aspectos do Estado de Direito e da garantia dos direitos fundamentais. Tal fenômeno, aliás, repercute também na seara do crime organizado com não raras manifestações inclusive e infelizmente entre nós e nas “barbas” da Constituição Federal de 1988, o que não significa que se deva abdicar (muito antes pelo contrário) do eficaz combate a tais formas de criminalidade, desde que não se renuncie às exigências postas pelo sistema internacional de reconhecimento e proteção dos direitos humanos e dos direitos e garantias fundamentais consagrados pela nossa Carta Magna.
Tendo em conta, ademais, o elevado número de questões intimamente ligadas aos direitos e garantias fundamentais (isso se considerarmos apenas a trajetória do direito interno), não nos resta alternativa a não ser estabelecer uma seleção de casos, seja no que diz com os assim chamados direitos civis e políticos, com destaque para as liberdades fundamentais, se no tocante aos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais.
Uma primeira decisão a ser relembrada é a proferida pelo STF no dia 10 de junho na ADI 4.815, relatada pela ministra Cármen Lúcia. No citado julgamento foi apreciada, depois de longa tramitação e amplo debate na esfera pública, inclusive em sede de audiência pública convocada pelo próprio STF, a interpretação constitucionalmente adequada da legislação infraconstitucional, notadamente dos artigos 20 e 21 do Código Civil, para efeito de vedar seja a confecção e publicação de uma biografia condicionada à prévia autorização do biografado ou mesmo de seus responsáveis. Como era de se esperar, em face dos precedentes da Corte, tanto o rechaço da autorização prévia como a interpretação conforme, tal como proposto pela ilustre Relatora para a hipótese, foram chancelados pela unanimidade dos julgadores que integraram o colegiado por ocasião da votação, muito embora se verifiquem relevantes diferenças quanto ao conteúdo e fundamentos de cada voto. Em suma, o que convém seja aqui mais uma vez realçado, é que cada vez mais o STF (ainda que isso não tenha sido expressamente tematizado em todos os votos) tende a aderir à doutrina norte-americana em prol da posição preferencial da liberdade de expressão, embora boa parte dos Ministros tenha ressalvado a possibilidade de controle jurisdicional quando em causa grave afetação dos direitos de personalidade eventualmente conflitantes, de tal sorte que não é possível extrair do julgamento uma posição uníssona em favor da tese de que os limites à liberdade de expressão são apenas e exclusivamente aqueles direta e expressamente previstos na própria Constituição Federal, ainda que se deva dar – aqui sim – preferência ao manejo do direito de resposta e da responsabilização cível (e criminal) a posteriori.
Embora ainda em curso o julgamento, um dos temas mais polêmicos enfrentados pelo STF, ademais de seu grande impacto sobre as relações sociais e mesmo econômicas, diz com a descriminalização do uso de drogas para consumo pessoal. No referido caso, cuida-se de discutir a constitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006, questionando a criminalização do porte de drogas para consumo pessoal guarda relação direta com direitos fundamentais pessoais do usuário (destaquem-se aqui a liberdade como autodeterminação, a privacidade e intimidade e mesmo a disposição do próprio corpo e da própria saúde), mas também, numa perspectiva ampliada, diz respeito a interesses coletivos, como é o caso da segurança pública (proteção de direitos de terceiros), da saúde pública e da vida familiar.
Nesse contexto, reafirma-se aqui que a despeito da posição pessoal simpática à descriminalização, não se há de deixar de ressaltar que mais uma vez – e isso tendo sido lançados apenas três votos – se verifica uma falta de articulação e sinergia entre os votos dos Ministros, seja quanto aos argumentos, seja quanto ao modo de decidir a questão, tudo a indicar que, a exemplo do que já ocorreu tantas vezes, será difícil, senão mesmo impossível, identificar com clareza a opinião da Corte no seu conjunto e os motivos determinantes da decisão. Dentre os argumentos colacionados nos votos, destaca-se o da autolesão e autonomia pessoal (mas também da proteção da vida privada do consumidor), somado ao fato de que isso não afetaria interesses e direitos de terceiros, de tal sorte que se trataria de uma delimitação excludente do controle e regulação pelo Estado, afastando-se a proibição do consumo, entendimento partilhado pelos ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, muito embora o segundo tenha limitado a descriminalização ao consumo da maconha, o que também se verifica no voto proferido pelo ministro Luiz Edson Fachin. Além disso, não se deve menosprezar (muito antes pelo contrário) o argumento de que a descriminalização, pelo menos da venda e uso de maconha, auxilia a minimizar o grave problema carcerário, reduz o fator custo e condiz com a notória ineficácia do modelo de repressão criminal brasileiro.
Aqui, mais uma vez, embora se possa concordar com a essência do argumento, relembramos que existem alguns reparos a propor. Em primeira linha, embora também existam muitas condenações pelo tráfico de maconha, boa parte (senão a maioria, o que é irrelevante para o efeito da discussão proposta) dos presos por tráfico o são pela traficância de drogas mais pesadas, especialmente a cocaína e o tão disseminado subproduto do crack, que precisamente são as que mais atingem a população, no caso do crack, com predominância das classes menos favorecidas e com efeitos devastadores. Assim, reafirmamos que se tal consideração, por um lado, parece sufragar a tese dos que propugnam pela descriminalização do consumo de drogas “leves” como a maconha, por outro, segue mantendo o status quo precisamente naquilo que o tráfico e consumo apresentam de mais nefasto, incluindo toda a criminalidade, que envolve não apenas todas as mortes ligadas ao conflito entre traficantes e os respectivos grupos, mas também em termos de saúde e vida pessoal dos usuários, ademais da criminalidade motivada pela necessidade de obter recursos para o consumo da droga, incluindo um crescente número de roubos e latrocínios. Além disso, descriminalizar o consumo e não descriminalizar a venda (ao menos em relação simétrica para cada droga excluída da criminalização) poderá fazer com que a emenda saia pior que o soneto, pois o usuário seguirá tendo de adquirir a droga do traficante, seguirá carecendo de recursos para sustentar o vício e toda a criminalidade daí resultante, pelo menos expressiva parte dela, seguirá ceifando vidas, afetando a integridade física e psíquica de tantas pessoas, além dos efeitos econômicos.
Por isso, uma proposta sustentável e que possa balizar um futuro menos nefasto, haverá de passar por uma solução mais completa e integrada, para o que, como bem frisado no voto de Edson Fachin, o STF deverá adotar postura – mesmo que se pronuncie pela inconstitucionalidade (parcial ou não e com modulação de efeitos ou não) do dispositivo legal impugnado – deferente aos órgãos legislativos e administrativos, pois eles é que deverão definir as balizas das políticas públicas nessa seara. O fato é que uma descriminalização mais ampla nesse domínio deverá acarretar, senão a redução dom consumo, ao menos uma descompressão do sistema carcerário, mas principalmente uma mitigação da violência que tantas e tantas vidas tem ceifado e que tanto tem contribuído para a erosão gradual da confiança nas instituições e cada vez maiores apelos para uma política penal dura e mesmo intolerante.
No campo dos direitos sociais, além de algumas decisões relevantes do STF sobre a matéria, cumpre destacar a inserção do Direito Fundamental ao Transporte no já farto elenco do artigo 6º da Constituição Federal. O “novo” direito social foi inserido pela Emenda Constitucional nº 90 (resultante da PEC 90/11, de autoria da Deputada Luiza Erundina, SP) insere mais um direito fundamental social no já significativo elenco de direitos consagrado no artigo 6º da Constituição Federal de 1988 (CF), totalizando agora doze direitos sociais, designadamente, educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade, proteção à infância e assistência aos desamparados, que já constavam do catálogo original de 1988, bem como os direitos à moradia, alimentação e agora ao transporte, respectivamente incorporados em 2000, 2010 e 2015.
Que a inserção de um direito ao transporte guarda sintonia com o objetivo de assegurar a todos uma efetiva fruição de direitos (fundamentais ou não), mediante a garantia do acesso ao local de trabalho, bem como aos estabelecimentos de ensino (ainda mais no contexto da proteção das crianças e adolescentes e formação dos jovens), serviços de saúde e outros serviços essenciais, assim como ao lazer e mesmo ao exercício dos direitos políticos, sem falar na especial consideração das pessoas com deficiência (objeto de previsão específica no artigo 227, § 2º, CF) e dos idosos, resulta evidente e insere o transporte no rol dos direitos e deveres associados ao mínimo existencial, no sentido das condições materiais indispensáveis à fruição de uma vida com dignidade.
Mas, consoante já versado em coluna anterior, a situação se revela mais complexa quando se trata de aplicar ao direito ao transporte o regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais, sem o qual a própria condição de direito fundamental restaria esvaziada. Especialmente problemática, também nesse caso, é de que modo se pode cumprir o mandamento da aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais, inclusive no que está em causa a vinculação direta dos atores estatais e também dos atores privados ao direito ao transporte, já que todos devem – em todos os seus níveis de atuação e respeitadas as limitações quanto a respectiva competência – assegurar-lhe a máxima eficácia e efetividade.
De particular relevo nesse contexto é a discussão em torno da viabilidade de se assegurar, de modo individual e/ou transindividual, ao cidadão um direito subjetivo originário ao transporte gratuito, mesmo sem regulamentação legal ou política pública promovida pelo Poder Executivo, ou apenas limitar tal direito, na condição de posição subjetiva e exigível pela via jurisdicional, a um direito derivado a prestações, no sentido de um direito de igual acesso ao sistema de transporte já disponibilizado ou mesmo um direito a promoção pelo poder público de politicas de inclusão em matéria de transporte público, seja mediante subsídios alcançados a empresas particulares concessionárias, seja por meio de empresas públicas de transporte coletivo, em ambos os casos com tarifas diferenciadas e mesmo em caráter gratuito para determinados segmentos, a exemplo do que já se passa em sede do assim chamado “passe-livre” para idosos e pessoas com deficiência, etc.
Aliás, a discussão em torno de eventual universalização do transporte público gratuito (mas também da ampliação de subsídios e tarifas diferenciadas, mas também da oferta e qualidade dos meios de transporte público), objeto inclusive de diversas das manifestações que varreram as ruas do Brasil nos últimos tempos, remete a outros dilemas, como o do financiamento do direito ao transporte, num ambiente de concorrência com outras demandas essenciais, como as da saúde, educação e segurança pública, todas enfrentando graves dificuldades quanto aos níveis de efetivação. De qualquer sorte, o que se impõe seja aqui relembrado, é que a situação é altamente complexa e demanda uma abordagem sistêmica e que não dispensa um conjunto de ações coordenadas de caráter legislativo e administrativo, bem como uma articulação em nível federativo, ademais de equacionamento no plano tributário, orçamentário e financeiro.
Um direito subjetivo originário, portanto, há de ter caráter excepcional e vinculado ao mínimo existencial, eventualmente ante a falta ou insuficiência da ação estatal. Além disso, numa formatação mais modesta, a inserção de um direito fundamental ao transporte, considerando a sua condição de direito fundamental, deveria pelo menos servir de fundamento para ações judiciais impugnando toda e qualquer medida não justificada e desproporcional que tenha por escopo reduzir os níveis de acesso ao transporte.
*Ingo Wolfgang Sarlet é professor titular da Faculdade de Direito e dos programas de mestrado e doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUC-RS. Juiz de Direito no RS e professor da Escola Superior da Magistratura do RS (AJURIS).