fbpx

Penas alternativas: a semente plantada na Escola da AJURIS cresceu em todo o Brasil

Penas alternativas: a semente plantada na Escola da AJURIS cresceu em todo o Brasil

Começou com uma inquietação pessoal na 12ª Vara Criminal do Foro de Porto Alegre a história do nascimento da infraestrutura que possibilitou a adoção de penas e medidas alternativas no Brasil. Uma história que ao longo últimos 35 anos teve a decisiva participação da AJURIS e da Escola da Magistratura para que saísse do papel, ganhasse corpo e se tornasse uma realidade nas mais distantes comarcas do país.

Até 1984, o cenário para o cumprimento de uma pena estabelecia que réus primários e sem antecedentes criminais, condenados em crimes de menor potencial ofensivo, eram beneficiados pelo dispositivo que previa a suspensão condicional da pena. Tratava-se da institucionalização de um sursis convencional, sem efeito educativo ou punitivo para o apenado. 

Essa previsão estabeleceu um conflito na época: desde sempre, a sociedade espera uma ação positiva do Judiciário para punir quem delinque, mas ao mesmo tempo havia uma tendência mundial, surgida em diferentes países, procurando evitar sempre que possível o encarceramento, já que colocar um réu primário no tradicional sistema penitenciário flerta com a possibilidade de fazê-lo se aproximar ainda mais do crime, tornando-o um reincidente.

O Código de Processo Penal começou a equilibrar esse conflito em julho de 1984, ao estabelecer que a suspensão da pena poderia ser trocada pela prestação de serviço comunitário, possibilitando ao condenado uma maneira de enfrentar a pena fora do ambiente da prisão, quando o delito de menor potencial ofensivo. Essas mudanças foram feitas pelas lei 7.209 (reforma da Parte Geral do Código Penal) e 7.210 (Lei de Execução Penal).

Na teoria, as penas e medidas alternativas poderiam funcionar, mas na prática não havia uma infraestrutura adequada no Poder Judiciário para que fossem adotadas. Foi então que, em 1984, a pretora e magistrada Vera Regina Müller, hoje aposentada, atuando na 12ª Vara Criminal de Porto Alegre, encontrou o que considera como uma “pilha de processos prescrevendo”, todos crimes de menor potencial ofensivo. Vera, então, viu na adoção das penas alternativas a melhor maneira de fazer a devida Justiça, evitando a prescrição dos crimes, e começou um trabalho que anos depois a faria reconhecida como a maior referência do país no assunto.


A ideia visionária

Com o apoio do professor Antonio Carlos Pradel Azevedo, Vera montou um projeto que estruturava a adoção das penas alternativas a partir de três pilares: a conscientização dos colegas para que a aplicassem quando os casos fossem indicados, a contratação de uma equipe técnica para o acompanhamento dos apenados que recebessem a medida e a criação de convênios com entidades e associações públicas e beneficentes para que recebessem esses apenados. 

A justificativa do projeto elaborado pela magistrada para o envolvimento da sociedade era objetivo: “O réu é proveniente de uma comunidade que, necessariamente, deverá contribuir, respondendo com seu apoio ao sentenciado. Não se trata de segregar, punir simplesmente, posto que também a comunidade responde pelos delinquentes que possui. Não se pode partir de uma visão de um Estado punitivo e protetor, nem de uma comunidade alheia a seus próprios filhos, mas duma harmoniosa integração na execução humana da pena, com o apoio comunitário”.

Chamado de Sistema para a Aplicação da Prestação de Serviços à Comunidade na Pena Restritiva de Direitos, o projeto teve o apoio de um magistrado visionário: Ruy Rosado de Aguiar Júnior.


Projeto piloto

Brossard e Simon atuando como senadores

Em agosto de 1987, o então ministro da Justiça, Paulo Brossard de Souza Pinto, e o então governador do RS, Pedro Simon, assinaram convênio para a implantação do projeto des penas alternativas no estado. Na mesma época, a direção da AJURIS também assinou convênio de igual teor com o Executivo estadual, prevendo a aplicação do projeto nas Varas de Execuções Criminais de Porto Alegre e Região Metropolitana. 

Com os recursos do governo federal, um plano piloto foi montado na Escola da Magistratura, que estabelecia metodologia e fluxograma para aplicar em um grupo de dez a 20 condenados durante o período de quatro meses. Foi chamado de Projeto de Prestação de Serviço à Comunidade, elaborado por acadêmicos de Direito e assistentes sociais, com a coordenação de Vera. 

O projeto estabelecia passo a passo como seria escolhido o apenado e se daria o fluxo de trabalho. Também apresentava um estudo indicando o perfil das instituições  convidadas, que assinariam o convênio com o Poder Judiciário: elas poderiam ser públicas ou privadas e deveriam realizar trabalho comunitário sem fins lucrativos. Além disso, seus dirigentes precisavam ter consciência da sua contribuição para a reinserção social do apenado. 

Convênio com a Ajuris

O apenado, por sua vez, além de se sujeitar a um acompanhamento constante, precisava ter consciência da importância da atividade para a comunidade. Em seu argumento final, o projeto estabelecia: “Trata-se de trabalho gratuito, pois do contrário não seria pena. Embora tratando-se de uma punição, bem menor do que a prisão, não se refere ao trabalho escravo, posto que é pena. É ônus, não uma fonte de vencimentos, e se o direito de punir justifica o encarceramento, nada impede a imposição de tarefas gratuitas, nos dias de descanso, por algumas horas, em favor do bem comum.”

“Uma coisa foi elaborar o projeto, a outra foi torná-lo realidade por meio do encaminhamento às Varas de Execuções Criminais os prestadores de serviço.  Faltavam técnicos para encaminhar e acompanhar o apenado no cumprimento de sua pena. Por isso a importância de existir uma infraestrutura nessas varas. A Escola da Magistratura da AJURIS foi um útero, gerou muitas coisas boas. Ali foi feita a seleção das primeiras assistentes sociais, dos estudantes de Direito e das psicólogas para montar a infraestrutura de acompanhamento. Também foi difícil convencer os dirigentes das instituições que poderiam contar com essas pessoas, réus primários sem antecedentes criminais e que haviam incorrido em erro”, lembra Vera, hoje aposentada e morando em Brasília.


Os primeiros resultados

Cerca de dez anos depois da estruturação para a adoção das penas alternativas foi possível conferir os primeiros resultados. Em 1997, uma pesquisa do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (Ilanud) realizada junto à Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, coordenada pela magistrada, demonstrou que apenas 12% dos adultos e 9% dos adolescentes, que na época receberam a pena de serviços comunitários, voltaram a delinquir. 

No sistema penitenciário, o retorno dos adultos ao crime era de 85%, conforme o Censo Penitenciário de 1995. Também mostrava que o custo para a manutenção dos réus condenados a penas alternativas era significativamente inferior ao do preso no sistema tradicional.

O resultado positivo, legitimado pela análise das Nações Unidas, reforçou a necessidade de aplicação das penas alternativas em todo o país. A partir da experiência gaúcha, Vera Muller gravou diversos vídeos com depoimentos de apenados e de responsáveis pelas instituições acolhedoras, se tornando uma incentivadora país afora, defendendo a conversão da pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos e da criação da infraestrutura necessária nas Varas de Execuções Criminais.


Penas alternativas em todo Brasil

Após a experiência exitosa, Vera Müller foi convidada a ser a coordenadora nacional da implantação da política pública das penas alternativas no país a ser financiada pelo Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), dentro da estrutura do Ministério da Justiça (MJ). 

Criado em 1994, o Funpen tem por objetivo financiar e apoiar atividades e programas de modernização e aprimoramento do sistema penitenciário nacional. Entre os projetos está a Central Nacional de Apoio e Acompanhamento das Penas e Medidas Alternativas (Cenapa), criado em 12 de setembro de 2000, por proposição de Vera Müller, e que tem o objetivo de distribuir recursos para a criação de centrais de penas alternativas nos estados, para a posterior criação de varas exclusivas dentro da estrutura do Poder Judiciário. A Cenapa funciona dentro da Secretaria Nacional de Justiça, do MJ. 

Penas alternativas implantadas em todo país. Evento nacional para debater o tema.

Em 2010, quando a Cenapa completou dez anos, um relatório do Ministério da Justiça fez um balanço do trabalho: “Experiências desenvolvidas mostram que é possível superar esses obstáculos e desenvolver políticas alternativas à prisão eficientes no enfrentamento de prática de atos considerados nocivos para a sociedade e, ao mesmo tempo, na redução dos níveis de controle punitivo. Nos últimos dez anos, as penas e as medidas alternativas avançaram significativamente, romperam resistências, instalaram-se nas mais diversas localidades nacionais e mostraram que têm potencial para se tornar, de fato, uma política criminal prioritária na agenda da segurança pública brasileira”, diz um trecho da publicação.

Junto com o trabalho da Cenapa, houve a criação de uma comissão nacional, constituída por representantes de todos os estados, com o objetivo de dar sugestões para o aprimoramento do sistema de aplicação de penas e medidas alternativas no país, com a realização de diversos congressos no Brasil. “Vi resultados incríveis, vi pessoas mudarem suas vidas, acima de tudo a melhora da pessoa que nunca mais comete outro delito. O juiz nunca fica satisfeito com a sentença, a gente quer que ela dê resultado. Se esse resultado significa crescimento e modificação da pessoa sentenciada, isso já vale muito”, afirma Vera Regina Muller, a magistrada que transformou uma inquietude em uma prática reconhecida por um país.

Na próxima reportagem da série especial dos 76 anos da AJURIS vamos saber como está a situação das penas alternativas e a importância dessa alternativa penal. 

 


Reportagem: Alexandre Bach
Imagens: Arquivo