08 abr O STF, novamente, diante dos desafios da proteção jurídica nos limites da vida, por Ingo Wolfgang Sarlet
Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Wolfgang Sarlet, publicado no dia 7 de abril na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur
Assim como se deu (e segue ocorrendo) no Direito estrangeiro e mesmo internacional, também ora tais controvérsias também digam respeito, como adiantado, ao estado finno Brasil a discussão sobre a proteção jurídica da vida humana nos seus limites inicial e final segue ocupando a pauta das discussões acadêmicas, legislativas e judiciárias, mas também nos domínios da opinião pública na sociedade civil. Muito embal da existência humana, como dão conta as querelas em tornos da eutanásia e do suicídio assistido, é no concernente ao aborto (interrupção voluntária da gravidez) que os debates têm sido polarizados e submetidos ao STF entre nós.
Depois da importante decisão sobre a possibilidade de interrupção da gravidez nos casos de anencefalia (ADF 54, julgada em abril de 2012), quando a nossa mais alta corte, por decisão majoritária, decidiu afastar a criminalização do aborto nessa hipótese, reconhecendo que nesses casos o grau de sofrimento emocional e psíquico da mãe e mesmo dos pais, ponderado com o grave comprometimento cerebral e a morte certa e em curto prazo (entre minutos e horas depois do nascimento) do feto caso nascido com vida, ademais de uma gravidez com maior risco para a mãe, justificaria a não incidência do crime de aborto, o debate não apenas não encerrou, mas foi retomado com força.
Com efeito, para além da existência de projetos de lei tramitando no Congresso, também o STF, apenas no decurso do último ano, está tendo a oportunidade (e o desafio) de deliberar e decidir novamente sobre tema tão difícil tanto na esfera moral quanto jurídica, ademais da repercussão social da decisão, seja ela qual for.
Isso — a repercussão e complexidade das decisões —, aliás, já se deve ao fato de que, se no caso da anencefalia o índice de compreensão e aprovação social era compreensivelmente alto, como davam conta pesquisas de opinião na época do julgamento, o mesmo já não deverá ser o caso atualmente.
Um dos novos processos aforados junto ao STF diz respeito aos casos de microcefalia (que se situa no plano do assim chamado modelo das indicações) e acompanha a lógica que presidiu a decisão sobre a interrupção da gravidez nos casos de anencefalia, ao passo que o outro, uma ADPF, interposta em março do corrente, busca a não incidência do tipo penal do aborto nos casos de interrupção voluntária no primeiro trimestre da gravidez, no sentido, portanto, da implantação no Brasil, por decisão judicial (!!!), da chamada solução dos prazos.
Mas o cenário se tornou mais complexo com a decisão do STF no Habeas Corpus 124.306/RJ, julgado em novembro de 2016 e publicada em março deste ano, originalmente relatado pelo ministro Marco Aurélio e que teve como relator para o acórdão o ministro Luís Roberto Barroso. Nesse caso, por maioria, formada pelos ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Rosa Weber, o STF concedeu a ordem (em favor de integrantes de uma clínica clandestina para a prática de abortos), tanto sob o argumento de que a prisão não atendia aos estritos requisitos da prisão preventiva, quanto pelo fato de entender que a interrupção da gravidez no primeiro trimestre não configura crime.
Em síntese, o STF (neste caso concreto e pela estreita via do Habeas Corpus) deu interpretação conforme a CF aos artigos 124 a 126 do Código Penal para o efeito de excluir de seu âmbito de incidência os casos de interrupção da gravidez no primeiro trimestre, entendendo existir violação a diversos direitos fundamentais da mulher, assim como violação dos critérios da proporcionalidade.
No que diz com a argumentação deduzida para escorar tal resultado, o voto-vista do ministro Luís Roberto Barroso enuncia os seguintes:
- a ofensa aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gravidez indesejada;
- a violação da autonomia da mulher quanto às suas escolhas existenciais;
- ofensa à integridade física e psíquica da mulher, pois é ela quem sobre tanto no corpo quanto na esfera emocional e psíquica os efeitos da gravidez;
- violação do princípio da igualdade, já que quem engravida é a mulher, de tal sorte que a exigência de tratamento igual impõe aos homens um dever de solidariedade e respeito às decisões da mulher;
- impacto maior sobre as mulheres pobres, que, por não disporem de recursos para acessar clínicas privadas e por não poderem utilizar os serviços do SUS, são compelidas a se submeter a riscos maiores para a sua vida e saúde;
- por derradeiro, não atendimento dos critérios da proporcionalidade, em virtude da falibilidade da criminalização do aborto, que, de acordo com estatísticas disponíveis, não apenas não evita a sua prática disseminada como é mais frequente em países que o consideram tipo penal do que naqueles que o permitem na primeira fase da gravidez. Além disso, ainda nesse contexto, o fato de que existem outros modos menos gravosos e mesmo mais eficazes de proteger a própria vida do nascituro, como a distribuição de contraceptivos, entre outros, ademais de os custos da criminalização serem maiores que os benefícios.
Diante dessa decisão, é fácil perceber que a decisão tomada por uma das turmas implica desde logo algumas questões de difícil trato, inclusive de foro interno no STF. Também nesse sentido, deixando, por razões óbvias nessa fase, de aprofundar o tema, é possível tecer algumas considerações.
Um primeiro aspecto que chama a atenção é que tal debate tenha sido travado na estreita via do Habeas Corpus, onde inviável todo e qualquer aprofundamento da matéria de fundo e em que o STF deveria ter se atido a deliberar sobre a legalidade da prisão, que, aliás, havia sido afastada, por outras razões, pelo ministro Luís Roberto Barroso na primeira fase de sua fundamentação.
Além disso, com a decisão tomada na turma, adentrou-se em domínio que por sua relevância deveria — também no nosso sentir (assim também a posição de Martin Haeberlin em artigo sobre o tema em fase de publicação) — ser objeto de ampla discussão pelo Plenário do STF sem uma antecipação de votos e precedida, dada a complexidade e repercussão da matéria, por audiência pública e outras formas de formação de uma convicção em nível deliberativo e colegiado, como foi o caso da ADPF 54, de espectro sabidamente muito mais limitado e menos polêmico.
Por outro lado, não é possível — a despeito do adiantamento da posição sobre o tema de três ministros — antever o desfecho do caso, e isso nem mesmo no que diz respeito à adoção de uma solução mais restrita, limitada à ampliação do modelo das indicações, como se verifica na hipótese da microcefalia ou outras. É preciso recordar, nesta quadra, que por ocasião do julgamento da ADPF 54, dois ministros (Cezar Peluso e Ricardo Levandowski) foram vencidos e outros ressalvaram que não estariam, com isso, a admitir automaticamente outras hipóteses legítimas de interrupção da gravidez. Assim, muito embora a alteração da composição do STF nesses últimos cinco anos (com a saída inclusive do ministro Cézar Peluso), o fato é que não há como afirmar qual será o resultado nos casos hoje submetidos à nossa mais alta corte.
De todo modo, é inegável que o debate atingiu agora no Brasil a sua fase mais aguda e talvez decisiva, tal como já se verificou em número significativo de países, onde, aliás, também acabou por ser objeto de decisão pelos tribunais, seja revisando as opções legislativas, seja decidindo na sua ausência, como costuma ocorrer entre nós quando se trata de matérias que envolvem grandes dilemas morais e religiosos, como foi o caso da querela em torno do reconhecimento da união homoafetiva e da interrupção da gravidez nos casos de anencefalia.
Mais uma vez, portanto — e aqui e por ora não se adentra o juízo de valor dessa situação —, o Congresso Nacional, apesar da existência de projetos de lei, queda inerte e deixa para o Poder Judiciário o encargo de decidir em primeira rodada sobre o tema. Se isso for novamente inevitável — como parece ser —, que o STF pelo menos assim o faça de modo efetivamente colegiado e deliberativo, em sede de Plenário e na esfera de uma prévia (e na medida do possível) abertura aos demais intérpretes da nossa Constituição.
*Ingo Wolfgang Sarlet é professor titular da Faculdade de Direito da PUC-RS, desembargador no TJ-RS, doutor e pós-doutor em Direito.