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‘O incêndio no tribunal’, por Felipe Rauen Filho

‘O incêndio no tribunal’, por Felipe Rauen Filho

O recente ataque de hackers ao sistema informatizado do Poder Judiciário trouxe à lembrança um fato ocorrido em 19 de novembro de 1949, quando, guardadas as peculiaridades de cada época, aconteceu transtorno parecido com o que está sendo enfrentado pelo sistema judiciário estadual.

No amanhecer daquele dia, por volta das 5h, taxistas com ponto na Praça da Matriz (na Capital) observaram que o prédio do Palácio da Justiça, construído ainda na época do Império e que abrigava o Tribunal de Justiça, a Secretaria do Interior e Justiça, cartórios e varas e repartições policiais, estava incendiando. Os bombeiros foram chamados, mas o fogo em poucos minutos tomou conta da edificação e não houve como controlar o sinistro, tornando a perda irremediável.

No mesmo dia, o governador Walter Jobim determinou a abertura de crédito extraordinário para reconstrução do prédio, hoje instalado no mesmo local e com o mesmo nome de Palácio da Justiça, mas com exclusiva ocupação pelo Poder Judiciário.

Milhares de processos e documentos se perderam irremediavelmente, além de uma das melhores bibliotecas jurídicas do país, a qual continha até decisões judiciais lavradas em latim. Chamou atenção o fato de que o local, embora a sua importância vital, não tinha nenhum serviço de vigilância na ocasião.

A suspeita desde logo foi de que se trataria de incêndio criminoso, visando destruir processos. Investigações foram iniciadas, e a Polícia Técnica concluiu que o fogo se iniciou pela sala do cafezinho, onde um “bico de gás” teria ficado ligado à noite.

Em 21 de abril de 1950, os jornais noticiaram que o conhecido estelionatário Manoel Frederico Gonzales de Aragon, conhecido como Major Aragon (alcunha que obteve por ter fugido da cadeia em Curitiba usando a farda de um oficial das forças públicas), teria confessado o crime relatando que procurara um processo referente a golpe praticado contra bancos locais por Miguel Svirski, a quem pretendia chantagear, e não encontrando os autos decidiu por incendiar o prédio. A confissão tinha como falha o fato de que Aragon na mesma data estava recolhido ao presídio de São Leopoldo, mas ele alegou ter fugido à noite para cometer o incêndio, retornando em seguida à prisão. O jornalista Celito de Grandi narra na edição de 5 de fevereiro de 2012 de Zero Hora que, estranhamente, o Major estava na casa de veraneio do governador quando revelou os fatos que se atribuiu. Mais tarde Aragon, conhecido fanfarrão e mitômano, se retratou da confissão e na ausência de provas o episódio nunca foi elucidado. Em 1952, Aragon foi assassinado por outro preso no pátio da Casa de Correção (em Porto Alegre), nunca tendo sido apurada a real motivação do crime, o que aumentou o mistério e as teorias conspiratórias a respeito do incêndio.

Factoides apareceram, um deles dando conta de que o objetivo era destruir os autos de um rumoroso caso de desquite entre casal da alta sociedade local e outro narrando que um servidor, quando as chamas findavam, ao encontrar ainda íntegro um processo de extrema complexidade, teria jogado os autos no fogo. Falou-se também que na véspera um funcionário teria encontrado resquícios de massa de vidraceiro na fechadura da porta principal.

Enfim, um episódio nebuloso que trouxe prejuízos irrecuperáveis para Judiciário, Secretaria do Interior e Justiça e Polícia Civil.

Um pouco mais sobre a história…

O antigo Tribunal de Justiça, inicialmente prédio gêmeo do Theatro São Pedro, foi modificado e ampliado por uma reforma concluída em 1927, que estendeu o edifício longitudinalmente, rompendo com a identidade volumétrica do pórtico pensado pelo engenheiro e arquiteto alemão Georg Karl Phillipp Theodor von Normann, autor dos dois projetos.

O atual Palácio da Justiça, no mesmo local, resulta de concurso nacional realizado em 1952 (quase três anos após o incêndio que destruiu o antigo prédio neoclássico), vencido por projeto do arquiteto Luís Fernando Corona, em coautoria com o acadêmico em Arquitetura Carlos Maximiliano Fayet. O prédio, só inaugurado em 1968, ainda hoje é referência de arquitetura modernista em Porto Alegre.


* Felipe Rauen Filho é juiz de Direito aposentado e vice-presidente de Aposentados da AJURIS. Texto publicado na seção Almanaque Gaúcho, da edição de 6 de maio de 2021, do jornal Zero Hora.