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Legislativo pode abrir segundo turno de análise da vaquejada no STF, por Ingo Wolfgang Sarlet

Legislativo pode abrir segundo turno de análise da vaquejada no STF, por Ingo Wolfgang Sarlet

Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Wolfgang Sarlet, publicado no dia 4 de novembro
na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur.

Depois de encerrado o julgamento no STF da ADI 4.983/CE, versando sobre a constitucionalidade de legislação estadual do Ceará (Lei 15.299/2013) que autorizava e regulamentava a prática da atividade dita cultural assim chamada de “vaquejada”, tendo o STF, por maioria apertada (6 votos a 5), declarado a inconstitucionalidade da lei, causa espécie que a Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado Federal, em 1º de novembro desta semana, tenha deliberado pela aprovação do Projeto de Lei da Câmara n. 24/2016, de autoria do Deputado Capitão Augusto, declarando a vaquejada como sendo integrante do patrimônio cultural e imaterial, ademais de incluir, na mesma condição, entre outras práticas tais como rodeios e provas de laço.

Aliás, vale a pena referir aqui teor da manifestação favorável do senador Roberto Muniz (PP-BA), no sentido de que em verdade, tal como nos rodeios e atividades afins e diversamente do que se verifica nas touradas, existe mesmo uma relação de “carinho” com o animal, aduzindo, além disso, que se a vaquejada consiste em prática cruel, também seria cruel manter animais em reclusão doméstica e aves em gaiolas.

Convém recordar, nessa quadra, que a posição vitoriosa no STF, firmada a partir do voto do relator, ministro Marco Aurélio e acompanhada pelos ministros Roberto Barroso, Rosa Weber, Celso de Mello, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia, reconheceu, a partir de laudos técnicos carreados aos autos pela Procuradoria-Geral da República, que a vaquejada, a despeito de manifestação cultural e esportiva típica no estado do Ceará e mesmo em outros estados da Federação, implica em crueldade com os animais, causando-lhes diversos danos e sofrimento.

Em síntese a linha argumentativa vitoriosa pode aqui ser condensada na afirmação do ministro Roberto Barroso, por ocasião de seu voto-vista, de que uma manifestação cultural que submeta animais à crueldade (no caso da vaquejada, torção e tração bruscas da cauda do animal) é incompatível com a vedação constitucional expressa estabelecida no artigo 225, parágrafo 1º, inciso VII, da Constituição de 1988, quando a regulamentação legal for impossível de modo suficiente a evitar práticas cruéis sem que resulte descaracterizada a própria manifestação cultural. Além disso, importa frisar que no seu voto o ministro Roberto Barroso, com absoluta pertinência, sustentou que no caso da vaquejada nenhuma regulamentação poderia impedir a crueldade com os animais submetidos à prática sem que com isso a mesma resultasse desnaturada.

Já a posição vencida, inaugurada pela divergência aberta pelo Ministro Edson Fachin e acompanhada pelos ministros Gilmar Mendes, Teoria Zavascki,  Luiz Fux e Dias Toffoli, centrou sua argumentação no reconhecimento de que a vaquejada consiste em manifestação desportiva e cultural tradicional no Ceará e que, mediante uma ponderação com a proibição constitucional da crueldade com os animais, deveria prevalecer nos termos da regulação levada a efeito pela legislação estadual, inclusive — nas palavras do ministro Teori Zavascki — pelo fato de que em causa estaria a constitucionalidade da lei estadual e não a prática da vaquejada em si, agregando que a lei estabelecia regras de segurança para os vaqueiros e animais, de modo a evitar as modalidades cruéis da atividade, bem como que a existência de legislação reguladora seria sempre preferível à sua ausência.

Embora nesta coluna não se pretenda avaliar todos os argumentos quanto à sua consistência interna e mesmo no que diz com a articulação coerente de todos os votos vencedores e vencidos, algumas questões merecem ser repisadas.

Em primeiro lugar, chama a atenção o recurso ao instituto da ponderação, salvo melhor juízo descabido no caso, visto que a vedação constitucional da crueldade com os animais é veiculada mediante regra estrita, representando uma ponderação prévia por parte do constituinte excludente de toda e qualquer dissidência, mesmo em contraste com eventuais princípios colidentes. Assim, desde logo toda e qualquer manifestação cultural ou prática desportiva somente estará protegida do ponto de vista constitucional se e na medida em que não resultar em crueldade com os animais!

Ademais disso, não se encontra no texto constitucional referência a uma regra de exceção, que, se existisse, poderia então eventualmente legitimar determinadas práticas evidentemente cruéis para com os animais.

Assim, o que se impõe seja verificado caso a caso — e na hipótese da vaquejada restou sobejamente demonstrado — é se determinada prática cultural e desportiva (mas não apenas nesses casos, pois poder-se-á tratar também do abate de animais para consumo, para efeitos de práticas de cunho religioso, entre outras) – se enquadra, ou não, no suporte fático da regra proibitiva, ou seja, se configura efetivamente uma ação cruel, que de modo desnecessário e desproporcional resulte em dor e sofrimento dos animais que lhe são submetidos.

Mas o que gostaríamos mesmo de sublinhar e de chamar a atenção é o fato de que poucos dias depois da decisão majoritária do STF no Poder Legislativo já cresce movimento no sentido de, desrespeitando a decisão, buscar a aprovação de nova legislação, desta feita em nível Federal, legitimando e regulando a vaquejada e outras práticas mais ou menos similares.

Como no sistema processual-constitucional brasileiro vigente o efeito vinculante próprio das ações diretas de inconstitucionalidade e diretas de constitucionalidade (assim como em sede de ADPF) alcança apenas a Administração Pública e outros órgãos do Poder Judiciário, mas não o Poder Legislativo, em si nada impede de fato uma reapresentação e mesmo aprovação da regulação legal declarada inconstitucional na esfera do processo legislativo, o que não significa que tal modo de proceder seja manifestamente incompatível com a relação de respeito recíproco que deve presidir as relações entre a Justiça Constitucional e os demais atores estatais.

Aliás, tal relação de há muito anda desgastada no Brasil e importa seja urgentemente reconstruída de lado a lado, de modo a evitar ainda mais situações de intensa e desnecessária tensão e mesmo franca oposição, que não tem contribuído para a necessária estabilidade institucional e resultado em desprestígio das respectivas funções e atuações, o que, contudo, não consiste no enfoque precípuo da presente coluna, mas com o mesmo guarda intrínseca relação.

Outro aspecto digno de nota, é que a proposta legislativa inclui, além da vaquejada, outras práticas, o que torna a questão bem mais complexa, pois além de o teor da legislação pretendida ser em grande parte distinto, em caso de aprovação, no todo ou em parte, pelo Congresso Nacional e de sanção presidencial, inevitavelmente o caminho levará a um segundo turno de discussão no STF, onde não apenas a vaquejada mas também outras práticas poderão vir a ser declaradas ilegítimas do ponto de vista constitucional, mas a própria vaquejada, considerando então a repercussão nacional da legislação e a apertada maioria obtida quando do julgamento da ADI 4.983 poderá ser vir (o que definitivamente não se espera!) a ser revertida.

Além disso, chama a atenção que com tantos assuntos complexos, urgentes e de elevada repercussão para toda a sociedade brasileira, como a votação do teto para os gastos públicos, de uma reforma da previdência, das medidas propostas contra a corrupção, dentre outras, surja no seio do Congresso Nacional uma proposta legislativa de tal natureza, ainda mais logo depois de julgamento em sentido oposto por parte do STF.

Nesse contexto, o que parece é que os defensores da vaquejada, rodeios e outras práticas afins, que evidentemente representam expressivos interesses econômicos, mas também um grupo significativo da população interessada, estão utilizando como estratégia justamente o fato de que a opinião pública e a mobilização nacional estão centrados em causas mais urgentes para o País, para, quem sabe, desviar a atenção do seu propósito e assim lograr a aprovação da nova regulamentação, até mesmo mediante um possível acordo de lideranças.

De qualquer sorte, não apenas se cuida de proposta manifestamente desrespeitosa, no caso específico da vaquejada, à decisão do STF, mas também de um projeto de lei, que, se aprovado for, poderá até mesmo resultar em julgamento desfavorável não apenas à prática da vaquejada (o que é muito provável), colocando em evidência a manobra legislativa, mas também poderá levar ao reconhecimento da ilegitimidade constitucional de outras manifestações culturais e desportivas, resultando, pelo menos na ótica dos proponentes do projeto de lei, em uma estrondosa derrota, no sentido — usando aqui uma linguagem menos convencional — se um verdadeiro “tiro no pé”.

Assim, caso a mobilização no corpo social e mesmo interna no Congresso (se é que dadas as circunstâncias, esta irá ocorrer) não resulte em desaprovação ou mesmo forte ajuste do projeto de lei (ao menos no concernente à vaquejada), é praticamente que teremos um segundo turno no STF, com resultados em boa parte imprevisíveis e de considerável impacto para diversos estados da federação. De todo modo, se com a presente coluna logramos chamar a atenção para tal fato, teremos logrado alcançar o resultado almejado.