14 abr A liberdade de expressão nos entendimentos do Tribunal Constitucional Federal, por Ingo Wolfgang Sarlet
Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Wolfgang Sarlet, publicado no dia 08 de abril na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur.
Retomando aqui o tema da proteção do ambiente em sua articulação com os direitos e deveres fundamentais, desta feita (mas sem renunciar a um desenvolvimento maior do tópico versado na coluna de 11 de março) optamos por apresentar e comentar relevante decisão monocrática do ministro Luís Roberto Barroso, proferida no dia 11 de março de 2016, julgando, em caráter liminar, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.447/DF, interposta pela presidente da República em face do Decreto Legislativo 293, de 10 de dezembro de 2015, que sustou os efeitos da Portaria Interministerial 192, de 5 de outubro de 2015, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e do Ministério do Meio Ambiente. Esta última, com a justificativa de definir os períodos de defeso (proibição temporária à atividade pesqueira para preservação de espécies) nela especificados, suspendeu tais períodos por 120 dias, prorrogáveis por mais 120 dias.
Consoante apontado na decisão, a motivação subjacente à medida do Poder Executivo seria basicamente de ordem econômico-fiscal[1]. A Procuradoria-Geral da República, por sua vez, lançou parecer na ação, endossando, na essência, as razões governamentais suscitadas na inicial, desconsiderando assim (s.m.j.) a gravidade do dano ecológico a ser provocado pela suspensão do defeso, ademais de atribuir o ônus de provar tal prejuízo a quem contestou a medida governamental, e não a quem a propôs a redução dos níveis de proteção ambiental.
Diferente foi o entendimento do ministro Barroso, segundo o qual não houve “apresentação de dados objetivos ou de estudos técnicos ambientais que comprovem a desnecessidade do defeso. Inobservância do princípio ambiental da precaução. Risco ao meio ambiente equilibrado, à fauna brasileira, à segurança alimentar da população e à preservação de grupos vulneráveis, que se dedicam à pesca artesanal”. O princípio da precaução, como sustentado na decisão (e na linha da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[2]), enseja a inversão do ônus probatório em desfavor do causador do dano ambiental ou poluidor (e não o contrário).
A liberação da pesca levada a efeito pela Portaria Interministerial referida, com a suspensão do período de proibição caracterizado pelo defeso, enseja notório dano à fauna aquática, já que a razão de existir tal medida reside justamente na proteção desta última, notadamente em respeito aos períodos mais sensíveis no ciclo reprodutivo das espécies[3]. O seguro-defeso (espécie de seguro-desemprego) pago aos pescadores caracteriza praticamente um “pagamento por serviços ambientais”, já que, ao não pescar, o pescador (e, por óbvio, a política pública estatal subjacente à medida) contribui para a proteção ambiental e a reprodução das espécies. Cuida-se, no caso, de uma concretização do princípio (e correlato dever!) da sustentabilidade, harmonizando os seus elementos ambientais, sociais e econômicos.
Avançando na análise do caso, calha frisar que a decisão do STF enveredou por trilha pelo menos em parte inovadora no contexto da jurisprudência em matéria ambiental do nosso pretório excelso. O ministro Barroso, é bem verdade, não chegou a mencionar expressamente o princípio ou garantia da proibição de retrocesso no texto de sua decisão, mas o fez indiretamente, servindo-se, em sua fundamentação, de passagem de livro deste signatário em coautoria com Tiago Fensterseifer[4] que trata exatamente do tema, inclusive grifando a expressão “proibição de retrocesso”. Nessa perspectiva, como tive oportunidade de tratar diversas vezes em sede doutrinária, a proibição de retrocesso opera-se não apenas quando em causa medidas do Poder Legislativo, mas também deve pautar atuação do Poder Executivo e até mesmo o Poder Judiciário. A “novidade” da qual se reveste a decisão está em sua aplicação no campo ambiental, acolhendo entendimento doutrinário que vem ganhando cada vez maior sustentação nos últimos anos[5].
Não se está, por certo, pregando uma aplicação maniqueísta ou absoluta do princípio da proibição de retrocesso ambiental, dissociada do contexto do caso concreto. No entanto, na condição de dimensão normativa do direito (e dever) humano e fundamental de proteção e promoção de um ambiente saudável e equilibrado, a assim chamada proibição de retrocesso implica a proteção dos níveis de proteção fática e jurídica do meio ambiente, no sentido de um direito de impugnar atos estatais que tenham como objetivo e/ou consequência a diminuição da proteção do ambiente.
Assim, a proibição de retrocesso implica o reconhecimento de um direito subjetivo que tem por objeto uma conduta negativa, ou seja, impugnar todo e qualquer ato que venha a reduzir e mesmo suprimir determinados níveis de proteção do ambiente.
A proibição de retrocesso, do ponto de vista da dogmática dos direitos fundamentais, opera, portanto, como um limite aos limites dos direitos fundamentais, porquanto parte do pressuposto de que toda e qualquer intervenção restritiva no âmbito de proteção de um direito fundamental carece não apenas de uma justificação (e mesmo legitimação) enraizada na própria Constituição Federal, como também enseja um rigoroso controle de sua compatibilidade com o marco normativo constitucional e do Direito Internacional dos direitos humanos.
Com efeito, a proibição de retrocesso significa em primeira linha que toda medida que diminua a proteção do ambiente deva ser presumida (relativamente) inconstitucional, salvo preenchidos um conjunto de critérios e que, sempre analisados à luz das circunstâncias do caso, ensejam um juízo de inconstitucionalidade acompanhado da correspondente sanção.
Assim, antes de adentrar os demais critérios, eventual medida restritiva do direito fundamental à proteção do ambiente deverá encontrar sempre respaldo na própria ordem constitucional, ou seja, justificar-se pela necessidade de proteção de outros direitos fundamentais. Além disso, como regra, a restrição deveria ser veiculada por lei em sentido formal e material, eventualmente por lei em sentido material, mas que possa ser reconduzida a uma autorização legislativa. Tal exigência, embora corresponda inclusive ao que dispõe os tratados de direitos humanos (restrição a direitos deve ser promovida pelo legislador), encontra-se amplamente flexibilizada no Brasil, seja pelo reconhecimento (nem sempre adequado) de poder normativo a entes não legislativos, seja pelo manejo do decreto autônomo, entre outros aspectos que aqui não cabe aprofundar, mas que se revela da maior importância não apenas na seara ambiental como também no que diz com as restrições impostas a direitos fundamentais em geral.
Mesmo que preenchidos os requisitos referidos, o ato restritivo (em princípio retrocessivo) deverá ainda atender a outras exigências, reclamando um teste de sua proporcionalidade (de acordo com a conhecida tríade da adequação, exigibilidade e da proporcionalidade em sentido estrito), sem prejuízo da necessidade de atentar-se ao núcleo essencial do direito restringido, esteja ele — ou não — associado ao assim chamado mínimo existencial ecológico.
No caso concreto ora comentado, nem se vislumbram razões consistentes que possam justificar a adoção da medida impugnada perante o STF, nem estão presentes os requisitos que autorizariam o reconhecimento de sua legitimidade constitucional, em especial a proporcionalidade, já que disponíveis outros meios (não invasivos da proteção ambiental) para salvaguardar de modo eficaz os direitos eventualmente conflitantes.
De todo modo, o que se pretendeu nesta coluna é chamar a atenção tanto para a decisão aqui apresentada, quanto para a necessidade de se investir cada vez mais numa dogmática jurídica que assegure a máxima eficácia e efetividade dos direitos fundamentais, em especial quando se cuida de direito tão relevante para a própria sobrevivência da vida, humana e não humana.
[1] “Evidências de que o poder regulamentar foi exercido com desvio de finalidade, para fins estritamente fiscais de economizar custos com o pagamento de seguro defeso aos pecadores e em detrimento do meio ambiente.”
[2] A título de exemplo, ver: REsp 1.060.753/SP, REsp 883.656/RS, REsp 1.049.822/RS, REsp 1.330.027/SP e REsp 972.902/RS.
[3] Segundo o art. 2º, XIX, da Lei da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca (Lei 11.959/2009): “XIX – defeso: a paralisação temporária da pesca para a preservação da espécie, tendo como motivação a reprodução e/ou recrutamento, bem como paralisações causadas por fenômenos naturais ou acidentes”.
[4] SARLET, Indo W.; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: Constituição, direitos fundamentais e proteção do meio ambiente. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 321.
[5] A respeito do “despertar” da doutrina para o princípio da proibição de retrocesso ambiental, tive a oportunidade de participar, juntamente com autores renomados do Direito Ambiental brasileiro e internacional – Michel Prieur, Antônio Herman Benjamin, Carlos Alberto Molinaro, Patryck de Araújo Ayala, Tiago Fensterseifer e Walter Claudius Rothenburg -, do Colóquio Internacional sobre o Princípio da Proibição de Retrocesso Ambiental, realizado pela Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle (CMA) do Senado Federal, sob a presidência do então Senador Rodrigo Rollemberg, em 29 de março de 2012. As palestras do evento foram reunidas sob o formato de livro editado pelo Senado Federal: O princípio da proibição de retrocesso ambiental. Brasília: Senado Federal/CMA, 2012.
*Ingo Wolfgang Sarlet é professor titular da Faculdade de Direito e dos programas de mestrado e doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUC-RS. Juiz de Direito no RS e professor da Escola Superior da Magistratura do RS (Ajuris)