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Proteção de direitos fundamentais diante das emendas constitucionais (parte 2), por Ingo Wolfgang Sarlet

Proteção de direitos fundamentais diante das emendas constitucionais (parte 2), por Ingo Wolfgang Sarlet

Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Wolfgang Sarlet, publicado no dia 20 de maio na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur.

Na coluna anterior tratamos da questão da abrangência do rol dos limites materiais ao poder de reforma constitucional e chegamos à conclusão de que a melhor exegese é a de que também os direitos fundamentais sociais se integram a tal elenco, pois são elementos constitucionais essenciais e compõe a identidade de nosso Estado Social e Democrático de Direito. Mas esta, sabemos, é apenas uma parte do problema que envolve a proteção de princípios e direitos fundamentais em face do poder de reforma da constituição. Com efeito, o dilema que se segue diz respeito ao nível de proteção efetivamente atribuído aos assim designados conteúdos “pétreos”, em suma, o quanto são “pétreas” as “cláusulas pétreas”. É justamente com isso que nos ocuparemos nesta coluna.

O ponto de partida há de ser precisamente a circunstância de que princípios e direitos e garantias fundamentais não são imunes a uma conformação legislativa e mesmo, no âmbito das colisões entre princípios e/ou direitos, a restrições. Nesse sentido, importa sublinhar que se a própria legislação ordinária diuturnamente restringe o exercício de direitos e conforma a configuração dos próprios direitos e princípios, o que em regra, observados limites postos de forma expressa ou mesmo implícita pelo constituinte, não importa em violação de tais direitos e/ou princípios. Assim, soaria estranho e mesmo contraditório imaginar que a lei ordinária possa impor pena de prisão por muitos anos, restringindo o direito de liberdade fortemente, mas que tal direito – mesmo sendo “cláusula pétrea”, não pudesse ser objeto de restrição mediante emenda constitucional. Do contrário, quem poderia mais seria o legislador com maioria simples em detrimento do poder de reforma que opera com maioria qualificada.

O que cabe, portanto, examinar é precisamente que tipo de proteção é inerente à condição de limite material ao poder de reforma constitucional.

Partindo do Direito Constitucional positivo, uma rápida leitura do artigo 60, parágrafo 4º, da Constituição Federal (… “não serão objeto de deliberação propostas de emenda tendentes a abolir…”), deixa antever duas diretrizes: a) não apenas as alterações que objetivam a supressão dos princípios e direitos guindados à condição de “cláusula pétrea”, mas também as que revelam uma tendência à sua supressão se encontram vedadas; b) os projetos de emenda que atentam contra esses mandamentos sequer poderão ser apreciados e votados pelo Congresso, de tal sorte que mesmo antes de sua promulgação se viabiliza o controle jurisdicional de sua constitucionalidade.[1]

Assim, como já adiantado, é certo que a condição de limite material ao poder de reforma constitucional não implica absoluta imutabilidade dos conteúdos como tais assegurados. Por outro lado, não é de fácil determinação o momento no qual determinada emenda à Constituição efetivamente tende a abolir o conteúdo protegido. Tal aferição apenas poderá ocorrer à luz do caso concreto, cotejando-se o conteúdo da emenda com a decisão fundamental integrante do rol das “cláusulas pétreas”, o que igualmente – vale enfatizar – se impõe na hipótese de incidir alguma limitação material implícita. Além disso, verifica-se que uma abolição efetiva, para efeitos do controle da constitucionalidade da reforma, pode ser equiparada a uma abolição “tendencial”, já que ambas as hipóteses foram expressamente vedadas pelo constituinte.

A garantia de determinados conteúdos da Constituição por meio da previsão das assim denominadas “cláusulas pétreas” assume, desde logo, uma dúplice função, visto que protege os conteúdos que compõem a identidade (a essência) da Constituição, embora tal proteção tenha o condão apenas de assegurar esses conteúdos quanto aos seus elementos nucleares, não excluindo desenvolvimentos ou modificações, desde que preservem os princípios naqueles contidos.[2] De acordo com a lição da doutrina majoritária, as “cláusulas pétreas” de uma Constituição não objetivam a proteção dos dispositivos constitucionais em si, mas, sim, dos princípios (e regras) neles plasmados, não podendo os mesmos ser esvaziados por uma reforma constitucional.[3] Nesse sentido, é possível sustentar que as “cláusulas pétreas” contêm, em regra, uma proibição de ruptura de determinados princípios constitucionais.[4] Uma mera modificação no enunciado do dispositivo não conduz, portanto, necessariamente a uma inconstitucionalidade, desde que preservado o sentido do preceito e não afetada a essência do princípio objeto da proteção.[5] De qualquer modo, é possível comungar do entendimento de que a proteção imprimida pelas “cláusulas pétreas” não implica a absoluta intocabilidade do bem constitucional protegido.

O núcleo do bem constitucional protegido é, de acordo com este ponto de vista, constituído pela essência do princípio ou direito, não por seus elementos circunstanciais, cuidando-se, nesse sentido, daqueles elementos que não podem ser suprimidos sem acarretar alteração substancial no seu conteúdo e estrutura.[6] Nesse contexto, afirmou-se que a constatação de uma efetiva agressão ao núcleo essencial do princípio protegido depende de uma ponderação tópica, mediante a qual se deverá verificar se a alteração constitucional afeta apenas aspectos ou posições marginais da norma, ou se, pelo contrário, investe contra o próprio núcleo do princípio em questão,[7] o que remete, por sua vez, à complexa e controversa relação entre a categoria do núcleo essencial a o princípio da proporcionalidade, que, todavia, aqui não será explorada.

Assim, em sintonia com tal entendimento e tomando como parâmetro o direito constitucional brasileiro, o problema do alcance da proteção com base nas “cláusulas pétreas” pode ser perfeitamente ilustrado mediante recurso a alguns dos princípios integrantes do rol do art. 60, § 4º, da CF. Com efeito, quando o constituinte incluiu a forma federativa de Estado (e o correlato princípio federativo) no elenco dos limites materiais à reforma (art. 60, § 4º, inc. I, da CF), tal proteção não se limitou ao art. 1º da Constituição (de acordo com o qual o Estado Federal brasileiro se compõe da união indissolúvel da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios), mas estendeu-se a todos os elementos essenciais da Federação. As normas versando sobre a distribuição de competência entre os diversos entes da Federação (artigos 21 a 24 da CF), a auto-organização e autonomia dos Estados (artigos 25 a 28 da CF) e dos Municípios (artigos 29 e 30 da CF) constituem apenas alguns exemplos inequívocos no sentido de que também estas normas, dada a sua particular relevância para a caracterização de uma efetiva Federação, se encontram imunes à atuação erosiva de uma reforma constitucional. Não restam dúvidas, por exemplo, de que, no caso da supressão da competência legislativa privativa dos Estados e Municípios, o Estado Federal ficaria atingido em um de seus elementos essenciais. Raciocínio semelhante pode ser aplicado ao princípio da separação dos poderes, que igualmente se encontra ao abrigo das “cláusulas pétreas” (artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV, da CF), assegurando sempre a autonomia e independência do Poder Judiciário.

Note-se que o STF, já desde a ordem constitucional pretérita, vem chancelando tal linha de entendimento, no sentido de que é o núcleo essencial do princípio e/ou direito e garantia (por sua vez assumindo a estrutura de princípio ou regra) que se encontra efetivamente blindado.

Num primeiro caso emblemático, julgado em 8 de outubro de 1980, mesmo tendo julgado improcedente a ação, o STF entendeu que a mera ampliação do mandato dos prefeitos por mais de dois anos não poderia ser considerada uma abolição (nem mesmo tendencial) da nossa República, já que o postulado republicano da limitação temporal dos mandatos políticos ficou preservado, de tal sorte que também aqui transparece a ideia de que o objeto da proteção (portanto, da intangibilidade) é o conteúdo essencial do direito (princípio) fundamental.[8] No mesmo sentido, já na vigência da CF 1988, o STF, manifestando-se sobre a constitucionalidade de emenda versando sobre a reforma previdenciária, entendeu que a forma federativa de Estado, elevada à condição de princípio intangível por todas as constituições brasileiras, não pode ser conceituada a partir de um modelo ideal de Federação, mas sim, aquele concretamente adotado pelo constituinte originário. Além disso, ainda de acordo com o STF, as limitações materiais ao poder de reforma constitucional, não significam uma intangibilidade literal, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação é assegurada pelas “cláusulas pétreas”. Não foi outro, aliás, o entendimento vitorioso quando do julgamento do MS 23.047-MC, publicado no DJ de 14.11.2003, relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, para quem “as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o artigo 60, parágrafo 4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege”.

Outro exemplo, bem mais recente, foi o caso da assim chamada “PEC da Bengala”, que alterou para os 75 anos a idade de aposentadoria compulsória – aqui está em causa a situação dos magistrados – e que foi parcialmente declarada inconstitucional, pois, na sua versão submetida ao crivo do STF, figurava a necessidade de os ministros dos tribunais superiores, uma vez completados os setenta anos, serem novamente sabatinados pelo Senado. Para o STF (relator ministro Luís Roberto Barroso), em decisão de maio de 2015, tal procedimento representa uma afetação inequívoca da independência dos magistrados e implica em intervenção no próprio núcleo essencial da separação de poderes.

Ao fim e ao cabo, do que aqui foi sumariamente exposto, resulta a convicção de que é de fato o núcleo essencial dos conteúdos constitucionais pétreos que se encontra blindado em face poder de reforma constitucional. Que a tarefa de identificar tal núcleo nem sempre é simples, igualmente salta aos olhos. Aliás, os exemplos referidos dão conta justamente de que por vezes os limites são tênues e que a solução será dada mediante uma serena e adequada reflexão caso a caso.  Mas tais questões serão objeto de consideração na próxima coluna.


[1] A respeito da possibilidade de controlar-se a constitucionalidade de uma emenda à Constituição mesmo no decorrer de sua apreciação pelo Congresso, já encontramos posição firmada pelo Supremo Tribunal Federal. Neste sentido, v. especialmente o voto prolatado pelo Ministro Moreira Alves, por ocasião do julgamento ocorrido em 08-10-1980 (RTJ nº 99 [1980], p. 1040).Já sob a égide da Constituição vigente, a possibilidade de controle prévio da constitucionalidade das Emendas à Constituição foi reiterada por ocasião do julgamento da ADIN nº 466-2/DF, ocorrido em 03-04-1991, quando, apesar de rechaçar-se a viabilidade do controle abstrato preventivo, não se excluiu eventual controle concreto, no caso, mediante a impetração de mandado de segurança, a exemplo do que ocorreu com a decisão anterior citada.

[2] Cf. KIRCHHOF, Paul. “Die Identität der Verfassung in ihren unabänderlichen Inhalten”, in: ISENSSE/KIRCHHOF (Ed.), Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, vol I, Heidelberg: C.F. Müller, 1987, p. 802. Entre nós, v., desenvolvendo o tópico e trilhando esta linha argumentativa, PINTO E NETTO, Luísa Cristina. Os Direitos Sociais como Limites Materiais à Revisão Constitucional,  Salvador: Editora Juspodivm, 2009, p. 169 e ss.

[3] Esta a lição de MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, vol. II, 2ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1988, p. 155.

[4] Cf. a oportuna ponderação de MENDES, Gilmar Ferreira. “Limites da Revisão: Cláusulas Pétreas ou Garantias de Eternidade. Possibilidade Jurídica de sua Superação”, in: Revista da AJURIS nº 60, 1994, p. 251, arrimado na doutrina de Bryde.

[5] Nesse sentido, v., MENDES, Gilmar Ferreira. “Plebiscito – EC 2/92 (Parecer)”, in: Revista Trimestral de Direito Público, nº 7, 1994, p. 120.

[6] Cf. NOVELLI, Flávio Bauer. “Norma Constitucional Inconstitucional? A Propósito do Art. 2º.§2º, da EC nº3/93” ,in: Revista Forense nº 330, 1995, p. 82.

[7] Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. “Plebiscito – EC 2/92 (Parecer)”, in: Revista Trimestral de Direito Público nº 7, 1994, op. cit. p. 120, que, neste sentido, se posiciona favoravelmente à aplicação, no contexto do controle das reformas constitucionais, da garantia do núcleo essencial.

[8] Cf. voto do Ministro Moreira Alves, in: Revista Trimestral de Jurisprudêncianº 99 (1980), p. 1040-1, consignando-se que com isso não se está a adentrar no mérito (sem dúvida controversa) da motivações subjacentes à decisão colacionada.

 

*Ingo Wolfgang Sarlet é professor titular da Faculdade de Direito e dos programas de mestrado e doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUC-RS. Juiz de Direito no RS e professor da Escola Superior da Magistratura do RS (Ajuris).