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Reflexões sobre a liberdade, por José Nedel

Reflexões sobre a liberdade, por José Nedel

1 – Afirmação polêmica

Deparo-me com esta afirmação polêmica de C. J. Furtado: “Acredito que a moral se conforme com os desmandos cometidos pelo ser humano. Afinal, ele é livre e usa a liberdade como lhe aprouver. Penoso é ter de suportá-lo quando procura justificar filosoficamente tais desmandos” (Correio do Povo, 1-12-15, p. 2). O comentário insere-se num contexto em que diariamente somos surpreendidos com excesso de notícias sobre a prática de desvios de conduta, como tráfico de drogas, violência, corrupção e outros crimes, genericamente enquadrados como “desmandos”, muitos deles recorrentes na área política. Colho a oportunidade para relembrar, entre outras coisas, a necessária distinção entre as diversas formas de liberdade, muitas vezes desleixada em discursos genéricos sobre a matéria, o que leva muitas vezes a graves equívocos.

2 – Formas de liberdade

Em sentido pleno, a liberdade comporta um aspecto externo e um interno. O externo é a isenção de coação vinda do exterior, constrangimento, pressão. O interno é a isenção de determinação por fatores ínsitos no sujeito, biológicos e psicológicos, padrões sociais de comportamento introjetados ou pela própria natureza humana. Considerando a estrutura do ser humano de ente psicofísico e moral, podemos enumerar estas formas básicas de liberdade: a física, a psicológica (livre-arbítrio) e a moral, que se prestam para as seguintes distinções. 

3 – Liberdade física 

É a mais simples das liberdades, a de ir e vir, pertencente à categoria das liberdades externas. Perde-a quem tem seu trânsito impedido por obstáculos, é escravo ou está preso. Também os brutos (animais irracionais), que não estão em correntes, jaulas ou gaiolas são livres fisicamente, aliás, único grau de liberdade de que são capazes.

4 – Liberdade psicológica 

A liberdade psicológica, ou livre-arbítrio, é a liberdade de escolha, liberdade interior, definível como “o poder de querer ou não querer [liberdade de exercício], de querer isto ou aquilo [liberdade de especificação], postos todos os requisitos para querer” (Willwoll, 1952, p. 112); ou “o poder objetivo de fazer o que se quer” (Leclercq, 1961, p. 50); ou ainda “a capacidade de decidir-se a si mesmo para um determinado agir ou sua omissão, respectivamente para este ou aquele agir” (Rabuske, 1981, p. 82). Presentes os requisitos para a volição, isto é, feito o juízo de indiferença relativo ao valor dos objetos que disputarão a preferência, ergue-se a vontade e o eu, de sua plenitude interior, decide num ou noutro sentido, com independência. O poder psicológico de querer vem com a própria natureza e se manifesta em todos os humanos no uso da razão e psiquicamente hígidos. Pelo visto, ato livre é o realizado, não de forma inconsciente ou semiconsciente, mas em estado de consciência e com vontade própria, sem constrangimento determinante ou coação.

5 – Liberdade moral 

A liberdade moral é o direito conferido pelo legislador ao agente de fazer o não vedado pela lei, de orientar sua conduta no âmbito do que é lícito. O legislador (natural ou positivo, divino ou humano, eclesiástico ou civil) traça a pauta por onde cada qual é moralmente livre para operar. Essa pauta é tirada a partir do princípio geral da moralidade “o bem [necessário] deve ser feito; e o mal [intrínseco], evitado” (Nedel, 2000, p. 93-94). Assim, ninguém é livre moralmente para escolher entre o bem e o mal, embora seja livre psicologicamente para essa opção. Só é moralmente livre para escolher entre vários bens dentro da faixa do permitido ou não vedado.

Vale dizer, cada um é livre moralmente para escolher bens e realizar atos não misturados com malícia moral. Para a escolha entre o bem e o mal o agente detém o tò posse [o poder – livre-arbítrio], não o tò licere [o ser lícito – liberdade moral], como ensina Victor Cathrein (1955, p. 154), pois a lei moral não tira o primeiro, o poder psicológico de o fazer; só o segundo, o direito de o fazer.

De acordo com a caracterização do âmbito permitido ou não vedado pelo legislador, emergem as diferentes especificações, tais como liberdade de opinião, de expressão, de consciência; liberdade religiosa, civil, social, política, econômica, artística, reprodutiva, entre outras.

6 – Liberdade e determinismo

O tema da liberdade é central na reflexão filosófica, principalmente a partir da época moderna. Os filósofos, no entanto, não são unânimes em caracterizar a liberdade, muito menos em defendê-la. Os que são a favor dela dominam amplamente o horizonte filosófico, desde a antiguidade. Assim, entre outros, Platão, Aristóteles, Agostinho, T. de Aquino, Descartes, Leibniz, Kant, Hegel, Scheler, Hartmann, Cassirer, Ortega y Gasset, Teilhard de Chardin, os personalistas, os filósofos da existência, a própria física quântica, etc.

Os que a negam se enquadram na corrente filosófica do determinismo, segundo a qual a liberdade psicológica é ilusão ou “mito” (B. F. Skinner). Em verdade, não seríamos livres. A consciência da liberdade seria um juízo errôneo oriundo do desconhecimento dos motivos inconscientes, ou das tendências determinantes. Todas as direções da vontade humana seriam determinadas pela constelação dos motivos influentes e da momentânea situação psíquica, consciente ou inconsciente.

De fato, liberdade não é negação do determinismo, antes o supõe e requer. Por sinal, há tantas liberdades quantas forem as formas de determinismo. Verifica-se liberdade, quando os mecanismos indispensáveis à realização de algum ato estiverem à disposição do sujeito. Afirmar que a homem é livre é proclamar que ele, mesmo enquadrado no conjunto da natureza e da sociedade, é em sentido estrito princípio de movimento, origem de acontecimentos, ponto de partida de um devir (Guardini, 1957, p. 21).

Em suma, o livre-arbítrio situa-se a uma distância igual entre as posições extremadas do determinismo e do indeterminismo. Vale afirmar que, não obstante a inclinação provocada pela força dos motivos, a vontade é a causa suficiente da decisão, não só num sentido, mas em vários sentidos disjuntivamente tomados. Assim, indeterminismo e determinismo, liberdade e necessidade não se opõem de modo a se excluírem, mas se integram, amparam e completam. Com propriedade, observa E. Mounier: “A liberdade não se ganha contra os determinismos naturais, conquista-se por cima deles, mas com eles” (1960, p. 107). Mais concisamente o afirma H. Bartoli: “Se a humanidade só fosse livre, não poderia ser livre. Não há liberdade se não há determinismo” (1955, p. 148). O determinismo é a própria condição da liberdade.

7 – Voluntário e involuntário

Ninguém nega que a atividade voluntária comporta fatores necessários, de ordem física (gravidade), biológica (montagem muscular e nervosa, secreções hormonais, modos de excitação), psíquica (dinamismo inconsciente, preconceitos, hábitos) e social (usos e costumes, pressão social). Ela supõe e exige o involuntário, isto é, só aparece após a suficiente maturação do involuntário. A vontade nada cria, nada edifica sem recurso às energias latentes nos dinamismos involuntários. Ela é condicionada pelos dinamismos involuntários, de sorte que a liberdade é sempre situada. Não fazemos o que queremos, antes o que podemos fazer.

8 – Liberdade, responsabilidade, imputabilidade

Da liberdade psicológica ou livre-arbítrio, que radica na razão, decorre a responsabilidade, capacidade e dever do agente de responder por seus atos conscientes e livres, mesmo os realizados sob o impulso do medo, a menos que este, por sua violência, tenha bloqueado o exercício da razão. Supressa a liberdade, obviamente resulta nula a responsabilidade.

A imputabilidade moral vincula-se à liberdade e à responsabilidade. Como o conjunto das condições pessoais que dão ao agente a capacidade para ser-lhe imputada a prática de crime, constitui o conceito básico do Direito Penal. Tais condições representam basicamente o discernimento e a autodeterminação ou liberdade. Sem elas, não há pena legítima. Ninguém merece punição por ato subtraído a seu poder interior de querer.

Entretanto, isso não só não impede, como ainda postula que a sociedade se proteja contra os inimputáveis perigosos. Embora não merecedores de pena, por falta das condições pessoais de discernimento e liberdade, são dignos de tratamento extrapenal, para benefício de si próprios e do organismo social como um todo.

9 – Argumentos a favor da liberdade psicológica

Os argumentos a favor da liberdade psicológica ou livre arbítrio são vários. Não determinam no espírito humano uma certeza imediata, como a atingida por intuição. Aqui a certeza possível é mediata, alcançada por raciocínio, que não elimina a possibilidade de dúvida, ainda que imprudente. Os argumentos principais são o metafísico, o psicológico, o moral e o ad hominem.

Segundo o argumento metafísico, a natureza espiritual da alma humana traz consigo a liberdade relativamente aos bens limitados. De acordo com o argumento moral, o livre-arbítrio é necessário para a observância da ordem moral: sem ele se esboroa a responsabilidade. O argumento psicológico é construído a partir de nossa experiência interna: nela detectamos a persuasão de que em muitas decisões de fato somos livres. O argumento ad hominem consiste em apontar a contradição dos próprios deterministas que, ao negarem explicitamente o livre-arbítrio, afirmam-no de modo implícito; ao defenderem o dever do Estado de opor às causalidades que impelem ao crime contracausalidades que as elidam, supõem tacitamente que o ser humano é livre de escolher entre umas e outras. Todos esses argumentos têm força de convencimento significativa, não absoluta. Mais sobre eles, no meu livro Ensaios antropológicos. 

10 – Conflito entre liberdade psicológica e moral

Observe-se que infrações acontecem porque o ser humano, dispondo de liberdade psicológica conferida pela natureza (poder interior de querer), transcende os lindes da liberdade moral outorgada pelo legislador (direito de querer limitado pela lei). Quer seja apenas moral a infração (pecado), quer seja também jurídica (ilícito civil ou criminal), decorre desse conflito entre liberdade psicológica ampla e liberdade moral restrita.

Em verdade, somos capazes de querer tudo o que se nos apresenta sob algum aspecto significativo de bondade objetiva ou suposta. Temos o poder psicológico para o querer, não o direito ou o poder moral. Este nos assiste apenas para querer o bom ou lícito, nunca o mau ou ilícito. A lei justa traça os limites dentro dos quais há liberdade moral para agir, embora sejamos psicologicamente capazes de ultrapassar esses limites, como tantas vezes acontece.

A afirmação citada no início requer, pois, distinções: o ser humano tem o poder psicológico, ínsito em sua natureza (liberdade psicológica), mas não o poder moral, conferido pelo legislador (liberdade moral), de “fazer o que lhe aprouver”. A liberdade moral limita-se às dimensões do não vedado ou do lícito.

De mais a mais, a moral não se “conforma com os desmandos” cometidos pelo ser humano, que na atualidade nos estarrecem, por sua frequência e enormidade. “Nunca antes na história deste país” foi assim! É que a moral não descreve o que é, como a sociologia, ou qualquer ciência de fatos, mas aponta para o que deve ser. Cabe à conduta humana conformar-se a ela, não vice-versa.

11 – Conclusão   

Embora se possam aduzir argumentos que façam vacilar a certeza teórica acerca da liberdade psicológica, na prática todas ou quase todas as pessoas a admitem e querem ser livres. Sob esse aspecto, a humanidade progrediu ao longo dos tempos, reconhecendo gradativamente as diferentes formas de liberdade. Aboliu a escravidão, embora ainda possam ser flagradas condições fáticas esporádicas de “trabalho escravo” em vários pontos do território nacional. Teoricamente chegou até a um conceito heroico de liberdade, considerada de valor equivalente ao da própria vida. Nesse entendimento, nós mesmos cantamos “ou ficar a pátria livre, ou morrer pelo Brasil” (Hino da Independência). Temos a convicção firme de que a liberdade é condição da própria felicidade possível neste mundo, pois “ninguém é feliz sem ser livre” (Vaz, 1986, p. 41).

De fato, podemos dar-nos conta de que as liberdades de toda ordem por nós usufruídas são amplas, muitas vezes oferecendo ocasião para agentes inescrupulosos ultrapassarem as raias da libertinagem e das práticas criminosas, até em vista de inexistentes, tardas ou fracas punições. São os desmandos a que se reportou o autor citado no início.

Enfim, o honesto ou justo, se cai “sete vezes”, não titubeia, “se levanta” (Pr 24, 16) e procura andar no caminho do bem. Valoriza a liberdade em sua natural limitação, usa-a com responsabilidade, respeitando a igual e legítima liberdade dos outros. Isso, aliás, pode ser considerado o primeiro e mais importante princípio de justiça, virtude que, bem visualizada, é o resumo da ética, como proclama Olinto Pegoraro até no título deste seu belo escrito: Ética é justiça.

12 – Referências bibliográficas

BARTOLI, H. Travail humain et conflits sociaux. In: FELTIN, Maurice et al. Qu’est-ce que l’homme? Paris: Centre Catholique des Intellectuels Français, 1955; CATHREIN, Victor. Philosophia moralis, 20. ed. Friburgi Br/Barcinone: Herder, 1955; GUARDINI, Romano. Liberdade, graça e destino. Lisboa: Aster/São Paulo: Flamboyant, 1957; LECLERCQ, Jacques. Saisir la vie à pleines mains. Tournai: Casterman, 1961; MOUNIER, Emmanuel. O personalismo. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1960; NEDEL, José. Ética, direito e justiça, 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000; —. Ensaios antropológicos. Porto Alegre: Sapiens, 2014; PEGORARO, Olinto. Ética é justiça. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995; RABUSKE, Edvino A. Antropologia filosófica. Porto Alegre: EST, 1981; SKINNER, Burrhus Frederic. O mito da liberdade. Rio de Janeiro: Bloch, 1972; VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de filosofia: problemas de fronteira. São Paulo: Loyola, 1986; WILLWOLL, Alexander. Psychologia metaphysica. Friburgi Br./ Barcinone: Herder, 1952.

 

 José Nedel
Magistrado e professor